Do palco ao set: O pop subvertido pela arte drag e pela música
- Guilherme William
- 18 de fev.
- 7 min de leitura
Atualizado: 7 de mai.
Como a arte drag e a cena pop se misturam para criar espaço, expressão e resistência fora dos grandes centros

Fazer arte drag é um ato de encenação, mas também de revelação. Entre cílios postiços e figurinos extravagantes, aquele que se monta cria uma linguagem própria. E o palco do pop internacional, com todos os seus clipes e álbuns conceituais, vem se tornando cada vez mais um terreno fértil (e competitivo) para essas performances acontecerem.
Nova York, 1980. Bailes escondidos, casas de Ballroom, corpos negros e latinos enfrentando os padrões da época com muita dança, estilo e atitude. Era arte, sim, mas também era sobrevivência. O voguing nasceu ali, no meio do abandono social e da opressão. Foi nesse cenário que o movimento cresceu: como uma resposta visual à exclusão, como uma performance que dizia “eu sou arte, mesmo quando o mundo diz que não”. E isso tudo antes de qualquer diva pop subir no salto pra copiar os mesmos passos.
Hoje, essa força performática aparece na arte drag que ganhou os palcos do mundo, trazendo uma herança visual que nunca foi só sobre aparência, mas sobre resistência. Só que, ao contrário do que muita gente acha, o que vemos nas passarelas ou nas telas não começou em reality shows como RuPaul’s Drag Race. O que a cultura pop vende como “brilho e lacração” nasceu da dor, da fome e da exclusão. A arte drag não vem do luxo, vem da falta. É um colar barato que vira joia. É um pedaço de pano que vira alta costura, e é um corpo que vira protesto.
E é justamente por isso que ela combina tão bem com o pop. Porque o pop, quando não se rende à fórmula, é um espaço de reinvenção. Michael, Prince, Bowie, Madonna, todos esses nomes, em algum momento, se apoiaram na lógica drag: exagero, transformação, e a utilização da imagem como um discurso. Depois veio Gaga, que entendeu isso de forma quase acadêmica. E agora, a nova geração de artistas drag internacionais não só copia a estrutura do pop, mas reescreve as regras do jogo misturando música, performance, moda e política num só corpo.
Só que nem tudo é brilho na passarela. Existe uma linha tênue entre ser valorizado e ser usado. A estética drag virou produto. Está nos desfiles, nas campanhas, nos comerciais… A figura da drag é exaltada como símbolo, mas nem sempre é respeitada como artista. E, muitas vezes, se a drag é preta, pobre e fora do padrão, o que era glamour vira piada. O pop ama o visual, mas nem sempre quer escutar quem criou aquilo. E é aí que a arte fica ainda mais necessária: porque ela insiste em existir, mesmo quando o mundo a consome como um tipo de enfeite.
Fazer drag é montar um personagem. Mas também é desmontar a norma. E, ao longo do tempo, poucas figuras simbolizaram tão bem essa virada de chave quanto RuPaul Charles. Na virada dos anos 90, Ru não só apareceu, ele conseguiu colidir com o sistema. Uma drag queen preta, alta, e glamourosa, lançando hits que tocavam na rádio, estampando comerciais de maquiagem e frequentando programas de auditório que, até então, nunca tinham dado espaço real para esses corpos. Foi ali, com o hit Supermodel (You Better Work), que o mainstream deu sua primeira “autorização” a uma arte que sempre viveu à margem da sociedade.
Mas essa chegada, por mais marcante que tenha sido, não veio sem cortes. RuPaul foi aplaudida, mas também suavizada. A arte drag virou destaque, mas um destaque controlado, com brilho dosado, moldado para funcionar em um talk show. A cultura drag, que por anos foi feita no improviso e na margem de um sistema quebrado, agora era cortada e encaixada em três minutos de show leve. E aí nasce o dilema: o que rola quando uma arte feita para quebrar regras vira produto?
Porque enquanto RuPaul brilhava no topo das paradas, muita coisa seguia fora do enquadramento. A cena underground ainda pulsava em becos, teatros pequenos, festas escondidas onde artistas drags costuravam suas próprias roupas, montavam seus palcos e criavam suas histórias sem filtro, sem grana, e sem espaço na mídia. E aí, mais do que uma briga por atenção, nasce um choque de estética. Uma diferença nítida entre o que vira “arte pop” e o que segue sendo chamado de “exagerado”, “forçado” ou “de nicho”. E adivinha quem ainda é deixada de lado quando foge do padrão? A drag preta. A drag gorda. A drag da periferia. A drag que incomoda.
Essa diferença não é só sobre o palco, é sobre o corpo. Porque o corpo drag não é neutro. Ele é montado, claro, mas também montado em cima de algo: memórias, feridas, vontades. Quando uma drag se apresenta, ela mostra o que a sociedade finge que não vê: que o gênero é fluído, que as regras são só costumes enfiados à força, e que aparência também fala.
DA TV PARA A REALIDADE: QUANDO A ARTE VIRA LINGUAGEM
É nesse meio de visibilidade, exclusão e reinvenção que surge Angelina. Uma artista que se monta com lente crítica, mas também com delineador preto. Que entende a lógica do pop, mas não se rende a ela. Que constrói um corpo em cena como quem desenha um tipo de manifesto.
Angelina Aggelos nasceu em Resende, no interior do Rio de Janeiro, mas foi em Cruzeiro, uma cidade pequena e sem muito contato com a cultura LGBTQIAPN+, que ela cresceu e começou a se montar. A cena drag estava longe dali, quase como um conceito abstrato, e era acessada só por vídeos ou fragmentos na internet. A estreia, no entanto, não veio de uma forma aleatória: aos 16 anos, ela serviu de modelo de maquiagem para uma amiga durante um curso. A amiga a montou e ali, na frente do espelho, alguma coisa encaixou.
A maquiagem, que naquele momento parecia só um favor, virou ritual. E a personagem, que parecia só uma “brincadeira”, virou um espelho. Começou fazendo suas próprias makes, pegando o jeito no improviso, aprendendo no olho, na pele, e também no erro.

Mas muito antes da maquiagem e do palco, já existia esse brilho. O primeiro pop da vida de Angelina não veio de uma boate, mas direto da sala de casa, “Minha mãe sempre colocava música internacional nas festas. Tinha um DVD com vários clipes e eu era obcecada por Thriller e Girls Just Wanna Have Fun, da Cyndi Lauper”, lembra.
Aos 22 anos, ela traduz esse repertório mais afetivo em estética, atitude e em presença de palco. A influência do pop internacional está relacionada em tudo: da escolha dos figurinos ao modo de entrar no palco. Não é à toa que, se ela pudesse morar dentro de um álbum, diz que escolheria After Laughter, do Paramore, trilha de sobrevivência emocional na época em que se assumiu LGBT para a família. Um disco que mistura melancolia com força, e que, de certo modo, resume a trajetória dela: sensível, mas feroz.
A cabeça por trás das perucas é estratégica. Uma mente que pensa em conceitos como a Taylor Swift pensa em eras. Mas Angelina não precisa de caixinhas. Quando ela entra no palco, cada música escolhida é pensada com precisão: tudo depende do lugar, da plateia, do clima. Ao falar sobre o processo criativo por trás das apresentações, ela diz que tudo se constrói em camadas. “Depende muito. Depende do evento, do público e até da minha fase, da minha época, do que eu tô sentindo no momento.” Ela reforça que, antes da performance aparecer, tem muito mais envolvido: “O que ninguém vê no processo de criar uma performance é a quantidade de vezes que eu escuto uma música. Tem várias músicas que eu já performei que eu não aguento mais escutar.”
O desafio de Angelina é equilibrar gosto pessoal com o impacto coletivo afinal o pop, no fim, se torna uma conversa.
“ Às vezes, o que a gente imagina não acontece, mas a tentativa de chegar lá, de viver o que se sente, já é arte. E no fim, isso é o que importa”, reflete a artista.
Quando a cena pop se mistura com o desejo de transformar o comum em algo a mais, o palco vira um lugar de resistência. E é aí que a arte drag e a música se encontram: como dois caminhos diferentes que apontam para o mesmo lugar, um lugar onde a identidade pode virar ato político.
Não é só a arte drag que resiste ao tempo e ao mercado, a música, quando é bem feita, tem esse mesmo peso. E é justamente aqui que o caminho de DJ Avel se cruza com o de figuras como Angelina Aggelos. Os dois, do seu jeito, usam a cena como um espaço para expor suas identidades. Mas enquanto Angelina constrói suas performances partindo da estética pop e drag, DJ Avel faz de sua música pop um lugar de resistência para o público LGBTQIAPN+ do interior paulista.
João Bruno, o DJ Avel, entrou no mundo da música com a mesma liberdade que a cena drag oferece. Criado em Tatuí, um lugar onde o sertanejo e o funk parecia ditar as regras, ele, ainda jovem, se encantou pelo pop internacional. Não só pela música, mas pela liberdade que ela carregava. Como muitas drags, Avel encontrou nas divas pop, como Britney, Madonna e Lady Gaga um espaço em que ele poderia ser ele mesmo sem medo do julgamento.
“Quando eu era criança, o pop era meu refúgio, na frente da televisão. Era um lugar onde eu podia ser eu mesmo, mesmo que ninguém entendesse o que isso significava”, diz o DJ. Para ele, a música sempre foi mais do que diversão; era uma forma de se expressar em um mundo que ainda não estava pronto para o ouvir.
Mas, ao contrário de muitos que buscam a cidade grande para conquistar seu espaço, Avel decidiu seguir em frente em Tatuí. "Muita gente me pergunta por que eu ainda toco aqui. Mas é porque tem pessoas que precisam dessa festa. Que não tem como ir pra São Paulo todo fim de semana para encontrar um lugar em que elas se sintam bem. Eu conheço essa galera, e eu faço parte dessa galera.”
É nesse espaço que Avel se reinventa. Sua música, assim como a cena drag, é feita de mudança e resistência. Seus sets são uma forma de quebrar padrões nas noites do interior. “Nunca fiz nada do jeito que esperavam. Eu Já ouvi de donos de baladas aqui em Tatuí que meu som era ‘coisa de viado’. E era mesmo, ué. Só que isso é ruim desde quando?”
No fim das contas, tanto Angelina quanto Avel sabem que o impacto real da arte tá na sua capacidade de provocar e transformar. Se um dia a cultura pop e a arte drag foram vistas como algo conformado, hoje ela virou uma forma de subversão, afirmação e, claro, um espaço seguro para a celebração. E talvez seja isso que une esses dois artistas: enquanto Angelina cria imagens para dizer o que palavras não dão conta , Avel monta seus sets e os dois unem a vontade de criar um espaço onde a performance não seja só um show, mas uma maneira de mostrar que, em cada passo, tem uma história de resistência e liberdade sendo contada.
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